quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Moita Macedo (parte I)

Começo hoje a inserir neste espaço a minha intervenção na abertura da exposição de pintura de Moita Macedo. Trata-se de uma obra que importa resgatar do esquecimento e, talvez, de um certo confinamento a um espaço político-cultural. A sala Portugal da Sociedade de Geografia, onde está a exposição, é um dos tesouros menos conhecidos de Lisboa. Por isso, de uma cajadada matam dois coelhos: vêem uma excelente exposição e conhecem um espaço lindíssimo. Aqui fica, então, a primeira parte do texto que apresentei:
"Dividi a minha intervenção em duas partes: começarei por me debruçar sobre uma questão teórica, a da relação entre palavra e imagem, sobre a qual tenho consagrado uma parte relevante da minha investigação ao longo de trinta anos, e concluirei com um breve tributo. O facto de o artista que hoje homenageamos ser também um artífice da palavra, suscita naturais interrogações face ao eventual diálogo entre essas suas vertentes criativas. Deve-se, aliás, ao próprio Moita Macedo a enunciação desse diálogo radical: “Pintei versos, escrevi quadros.” Nesta frase reconhecem-se os ecos clássicos do grego Simónides de Ceos - “A pintura é poesia silenciosa, a poesia é pintura que fala”, e do romano Horácio quando, séculos mais tarde, proclamaria na sua Arte Poética: “Ut pictura poesis”- tal como a pintura, também a poesia. Seria necessário esperar por Laocoön, o ensaio setecentista de Lessing, para que as duas tradições artísticas - as que surgem ancoradas na palavra e as que se afirmam pela imagem, conhecessem a famosa distinção: artes do tempo e artes do espaço. Coloca-se, deste modo, uma questão: ao superar a dicotomia lessinguiana, como sugere a declaração “Pintei versos, escrevi quadros”, Moita Macedo estará a exprimir uma afinidade radical entre as duas expressões artísticas por ele praticadas? Gostaria, assim, de vos propor uma brevíssima reflexão em torno deste tópico. Ao lermos os poemas de Moita Macedo emerge na nossa memória uma tradição poética que será facilmente identificável por parte daqueles que viveram ou conheceram os círculos intelectuais de resistência ao regime, em particular, na década de sessenta do século passado. São inúmeros os poetas que, de imediato, recordo; nomes hoje praticamente esquecidos como Vicente Campinas, Mário Gonçalves, Francisco Viana, Bação Leal, ou mesmo Daniel Filipe, ou não esquecidos, como Manuel Alegre e, numa geração mais recente, José Jorge Letria. Nomes habitualmente associados a um neo-realismo tardio e que, por isso mesmo, pela sua filiação política, não raro são confinados ao marxismo. No entanto, mesmo quando trazemos à mente nomes da geração anterior, como Sidónio Muralha, aquilo que me parece ser mais evidente é a dimensão confessional; a afirmação de uma sensibilidade face ao mundo que, por muito que pudesse custar a esse marxismo, e a eles próprios, está mais próximo de um certo pathos existencialista que, na nossa sensibilidade colectiva marcada pela saudade, declara a melancolia do indivíduo face a uma realidade constrangedora. Talvez estes poetas estejam, afinal, mais próximos do Santo Agostinho, das Confissões, ou de Rousseau, também o das Confissões, do que de Marx. Por isso mesmo, creio que a designação que melhor os identifica será a de confessionalistas. Curiosamente, foi nos Estados Unidos que a tradição poética confessional se celebrizou na década de 1950, não por acaso em Boston, nessa cidade onde a memória puritana ainda persistia, sob a égide da psicanálise freudiana. Sylvia Plath será porventura o nome mais conhecido, entre nós, dessa sensibilidade literária. Para ela, como para poetas como Robert Lowell, Freud desvendou o indivíduo como espaço de existência dramática. Já para os poetas portugueses antes referidos, a dimensão dramática decorre, como assinalei, das circunstâncias sócio-políticas envolventes. Daí que a dimensão confessional se exiba como melancólico testemunho do poeta. É deste modo que ela se exibe naquele que, para mim, é a voz mais forte dessa tradição, Daniel Filipe; curiosamente, aquele a quem Moita Macedo dedica “Quando morre um poeta”. Este poema de Moita Macedo denuncia uma óbvia afinidade face a Daniel Filipe; uma afinidade estética, política e, reitero, existencial, firmada numa partilha radical, em termos etimológicos, do quotidiano. No entanto, o reconhecimento dessa afinidade não nos deve constranger em termos de leitura. Embora o testemunho seja evidente nos poemas de Moita Macedo, essa exibição de um rosto, de uma sensibilidade, que o testemunho pressupõe, não funciona como derradeiro limite do texto. Não estou a denegar a existência dessa vertente, central em versos seus como os intitulados “Desejo ao poema”: Queria// Que os meus poemas fossem pedras/ Que à noite,/ Tradição arremessasse!// Queria// Que cada pedra fosse uma canção/ Que o povo cantasse! / Essa vertente é, de facto, recorrente. Mas outra, eventualmente mais indirecta e reflexiva, deve ser lembrada. Veja-se o poema significativamente intitulado “Colagens”. Nele é a estética visual ancorada na palavra, aquilo a que a tradição ecfrástica grega designava enargeia, isto é, a vivacidade de representação do objecto através da palavra, que pontifica: N`elas/ Recortados, colados, estendidos/ Esfaimados e adormecidos/ Estão arautos despertados/ De ânsia de ideal, de ânsia dos/ sentidos/ N`elas/ Estão pedaços-de-Paula/ Lançados sobre as telas./ Nestes dois exemplos define-se um rosto: o do cidadão/poeta e o da artista. "

3 comentários:

  1. Mais uma vez, parabéns pela excelente comunicação, cuja segunda parte, obviamente me emocionou, obrigada,
    Rosarinho

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  2. Se tiveres um bocadinho de tempo, espreita o meu blog www.continuobuscando.blogspot.com onde partilho os poemas que escrevo para crianças :)

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    1. Já passeei pelo teu blog. Parabéns pela alegria que dele emana.

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