quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Saiu agora o livro


com as traduções em diferentes línguas do poema de Wilfred Owen, "Anthem for Doomed Youth". Owen morreu em 1918, aos 25 anos, uma semana antes do armistício.
A edição, esteticamente muito bonita, coube a Damian Grant.
A editora é da Universidade de Lille 3.
Aqui fica de novo a minha tradução (que encerra o livro), juntamente com o poema na sua versão original:


"Hino para uma juventude condenada"

Que sinos tocam por estes que morrem como gado?
Apenas a raiva monstruosa das armas;
Apenas o soluçar rápido das espingardas
Acompanha as suas preces apressadas.
Não ouvem fingimentos; nem orações, nem sinos,
Nem vozes enlutadas, excepto os coros -
Os estridentes, dementes coros do pranto das balas,
E dos cornetins que os chamam em tristes condados.

Que velas se erguerão em seu louvor?
Não nas mãos de jovens, mas sim nos seus olhos
Cintilarão as piedosas luzes das despedidas;
A pálida tez das raparigas será a sua mortalha;
Suas flores, a ternura de resignadas memórias,
E cada lento crepúsculo, uma persiana que se fecha.

Eis o texto original:


"Anthem for Doomed Youth"


What passing-bells for these who die as cattle?
Only the monstrous anger of the guns;
Only the stuttering rifles' rapid rattle
Can patter out their hasty orisons.
No mockeries now for them; no prayers nor bells,
Nor any voice of mourning save the choirs—
The shrill, demented choirs of wailing shells,
And bugles calling for them from sad shires.

What candles may be held to speed them all?
Not in the hands of boys, but in their eyes
Shall shine the holy glimmers of goodbyes;
The pallor of girls' brows shall be their pall;
Their flowers the tenderness of patient minds,
And each slow dusk a drawing-down of blinds.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Votos de Feliz Natal, para quem por aqui passe



per chi beve di notte
e di notte muore e di notte legge
e cade sul suo ultimo metro,
per gli amici che vanno e ritornano indietro
e hanno perduto l'anima e le ali.

Per chi vive all'incrocio dei venti
ed è bruciato vivo,
per le persone facili che non hanno dubbi mai,
per la nostra corona di stelle e di spine,
per la nostra paura del buio e della fantasia.

Autobiografia de Deus, segundoJosé Tolentino Mendonça


"Somos a autobiografia de Deus"

Quando despontarem as primeiras luzes do Seu cortejo
ainda nos faltará tudo:
o azeite na almotolia,
um alfabeto que descreva com outra firmeza o azul,
formas indivisíveis para este amor,
que só em fragmentos
e numa gramática imprecisa
conseguimos viver.

Quando despontarem as primeiras luzes
estaremos talvez longe:
à altura dos olhos continuaremos a trazer a mesma indisfarçável solidão
as mesmas mediações ilegíveis através do tempo
as mesmas demoras tatuadas.

O Seu advento encontra-nos sempre impreparados
e, contudo, este é o momento em que
por puro dom se nasce.

A Sua vinda testemunha o que não sabíamos ainda:
a nossa frágil humanidade é narração
da autobiografia de Deus.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Quando pensamos que já pouca coisa nos pode perturbar


algo de profundamente inesperado surge.
A Farsa da Rua W, de Enda Walsh, demonstrou-me exactamente isso! Naquela violência e naquele humor, naquela ternura e naquela intensa dor, é, afinal, a comédia humana que se revela.
Creio que só um irlandês poderia ter escrito um texto assim!
Com as devidas distâncias, algo me fez lembrar The Playboy of the Western World e também, claro, Beckett.
Muito, muito longe dos clichés pós-modernos.
Acima de tudo, intensamente inesperado, portanto.
A não perder!
Artistas Unidos.
Na Rua da Escola Politécnica.
Ainda e sempre a inteligência estética de Jorge de SIlva Melo.
Afinal, contra os rumores, ainda há teatro por aí... e público!
Pouco me interessa que venha de outras margens...
Bom fim de semana!

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Fotografia e literatura


A propósito da exposição do fotógrafo canadiano Jeff Wall, que está em exibição em Santiago de Compostela, reproduzo a parte da entrevista concedida ao jornal Público onde o artista aborda a relação entre literatura e fotografia.
Curiosamente (por acaso?) esta entrevista surgiu no mesmo dia em que alguns de nós debatíamos estas questões. Reparem no Benjamin...

Pergunta - Esta exposição é percorrida por referências à literatura, sobretudo aquela que emerge na transição do século XIX para o século XX. Qual a razão desta preferência?

Resposta - Não tenho a certeza que a prefira; talvez seja devida às circunstâncias desta exposição. Um bom exemplo é a presença de "Nadja", de André Breton. Não sou grande seguidor de Breton; respeito-o, mas não é um autor do qual me sinta muito próximo. Contudo, "Nadja" foi muito importante para mim, devido à forma como combina uma narrativa poética, subjectiva, com a fotografia. Quando descobri o livro pela primeira vez, nos anos de 1960, ele teve um forte impacto: sente-se que as fotografias de ruas e de edifícios banais de Paris realizadas por [Jacques-André] Boiffard, estavam intimamente ligadas a essa narrativa literária, poética, fantástica.

Pergunta - "Amour Fou" é um outro livro de Breton no qual surge esse diálogo entre texto e imagens...

Resposta - O grupo surrealista manteve uma relação interessante com a fotografia: muito conhecedora, sofisticada e livre. Geralmente tenho muito apreço pela forma como esse grupo de escritores se relacionou com a fotografia. Não são, porém, os únicos pelos quais me interesso, embora goste muito das suas obras. Gosto muito de literatura, leio muito e, em criança, gostava de ler romances, poesia... Ainda gosto de me envolver, enquanto leitor, com a literatura, porque é, em si, uma experiência estética... e pode fazer-se no sofá, não se tem de sair de casa; é muito conveniente. Adoro sentar-me ao fim da tarde, relaxar-me e ler um romance. Sempre o fiz e sei que influenciou a minha sensibilidade, a minha personalidade.

Pergunta - Numa das vitrinas da exposição apresenta "Documents", uma "revista ilustrada" editada entre 1929 e 1931, que marca uma ruptura com o surrealismo e na qual também é evidente a relação entre a palavra e a imagem fotográfica...

Resposta - Esse momento, no século XX, fui uma das mais criativas, originais e sugestivas instâncias de gente sofisticada a olhar para a fotografia de forma inovadora. Podia facilmente ter colocado uma centena de outros livros na exposição, todos eles relacionados com uma experiência significativa para mim, mas não teriam directamente a ver com fotografia. Tive de escolher cuidadosamente algumas coisas às quais poderia dar um estatuto exemplar desse vínculo entre literatura e fotografia. As três novelas que se vê numa outra vitrina [livros de Ralph Ellison, Franz Kafka e Yukio Mishima], todas relacionadas com as minhas fotografias ["pictures", palavra que pode ser também traduzida por quadros], produzem outro tipo de relações: o meu envolvimento com essas novelas foi puramente acidental; nunca tive um plano para fazer uma fotografia. Estava simplesmente a ler, como faço habitualmente...

...

Pergunta - Essa noção de acidente recorda também uma outra, a de "acaso objectivo" ["hasard objectif"], central na construção de "Nadja", de Breton...

Resposta - Absolutamente. Gosto da forma como Breton se coloca num determinado estado em que permite que algo lhe aconteça. Não estava à procura, estava à espera, antecipou um acidente, mas não sabia aquilo que era e permitiu que a aventura ocorresse: é uma boa analogia para a minha própria forma de fazer as coisas.

Pergunta - O grupo associado à revista "Documents", entre os quais Georges Bataille e Carl Einstein, dava muita importância às "doutrinas, arqueologia, belas-artes e etnografia." O seu trabalho parece mais próximo de uma arqueologia do que de uma aproximação etnográfica às imagens. Na exposição está patente uma fotografia de Alfred Stieglitz, "Excavating, New York", 1911, que pode ser lida como uma bom exemplo daquilo que propõe em "The Crooked Path"...

Resposta - É uma boa interpretação, embora não me sinta próximo de nenhuma delas [nem de uma arqueologia, nem de uma etnografia]. As pessoas ligadas à "Documents" estavam sintonizadas com formas críticas de pensar acerca da cultura que estavam a inventar. [Na exposição], a revista "Documents" está aberta numa página que mostra uma povoação na British Columbia, o que é formidável: o facto de eles terem sido os primeiros a interessar-se pela arte e pela cultura daquela área. Existe, portanto, uma espécie de "Vancouver conexion" através do Museu do Homem e da "Documents": a forma alienada desse grupo olhar para as coisas era semelhante à nossa. Algures na entrevista publicada no catálogo digo, citando Walker Evans, que cada romance é, em certo sentido, um livro de fotografias - o seu livro, "American Photographs" [1938] é, de certa forma, o seu grande romance americano. Penso que ele sentiu isso intensamente. Os fotógrafos são poetas: os grandes são todos poetas. A maioria interessa-se por poesia. E sentem que existe alguma afinidade entre aquilo que fazem e aquilo que um poeta faz. Sou grande devoto de Baudelaire, por causa da forma como ele pegou na reportagem e a transformou em poesia. Os poetas franceses desse período até aos surrealistas, passando por Proust, fizeram algo de assinalável, único, e que alguém que esteja seriamente interessado em arte moderna tem de apreciar.

Pergunta - Podemos então ler as suas fotografias como poemas...

Resposta - Análogas à prosa poética, de uma forma simples. Sinto que Baudelaire, que escreveu os maiores poemas em prosa, teve a intenção de escrever uma reportagem e acabou com um poema. E penso que esse processo diz tudo acerca de como a fotografia se pode tornar artística. Começamos por nos decidir em informar acerca de alguma coisa, mas não ficamos por aí.

Pergunta - Walter Benjamin, que escreveu quer acerca da fotografia, quer sobre Baudelaire, aborda a questão da perda da aura...

Resposta - Para a minha geração, Benjamin foi uma figura central na formação da forma de pensar. Isso foi há trinta ou quarenta anos, quando se tornou uma figura tão excitante, em parte pela forma como escreveu, o seu estilo, e em parte por aquilo que se interessou. Ele estava sintonizado com muitas das coisas que temos falado... a sua amizade com Bataille. Movia-se nos mesmos círculos, embora fosse alemão. A ideia de que a tecnologia moderna iria dissolver a aura das obras de arte era fascinante, mas não era verdade. Não há perda de aura, só porque um trabalho é feito num novo media. Não interessa se ele estava certo ou errado.

Pergunta - A perda de aura chegou sobretudo através da reprodução de esculturas e pinturas através da imagem fotográfica... No seu trabalho, a aura parece emanar das próprias caixas de luz que revelam a fotografia...

resposta - E é isso que comecei a não gostar nas minhas caixas de luz. Uma das razões que me levou a fazer uma pausa nesse trabalho foi o facto de elas terem demasiada dessa luminosidade aurática. Não são suficientemente resistentes.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Uma retórica do consenso?


Este foi o título de um texto meu que saiu na passada quarta-feira no Diário de Notícias.
Aqui fica:

"Alguns aspectos formais fazem com que as eleições americanas sejam motivo de alguma perplexidade para nós, portugueses, habituados que estamos a processos particularmente lineares a este nível. Essa singularidade passa, desde logo, por um sistema eleitoral que os fundadores setecentistas consideraram dever combinar vários equilíbrios processuais que vão de metodologias indirectas a outras de democracia directa, com muitas subtilezas de permeio.
No entanto, mais do que esse “estranho” sistema, estou certo de que aquilo que, para nós, constitui maior motivo de perplexidade, ainda que não facilmente identificada, será, exactamente, a importância que assumem determinados traços indentitários em todo esse processo.
Veja-se, por exemplo, esse ritual nuclear na vida dos americanos – não só dos indivíduos mas também do colectivo, da nação – que é o Dia de Acção de Graças.
Contrariamente ao que transcrevia uma tradução - errada - do discurso do Presidente Obama num canal televisivo português, os americanos não “valorizam” esse dia. Com efeito, o que o Presidente disse foi que eles “davam graças”. De facto, o dia de Acção de Graças remonta aos primórdios coloniais, quando, após a ajuda determinante dos nativos, os membros de uma comunidade da Nova Inglaterra, deram graças a Deus, assinalando um ano de sobrevivência naquele espaço hostil.
Esta é, portanto, desde a sua origem, há precisamente quatro séculos, uma cerimónia em que esse núcleo fundamental da sociedade que é a família, se reúne para dar graças por aquilo que lhe foi concedido ao longo do ano. Indivíduo, família e comunidade interagem num ritual que, sendo obviamente secular, possui uma dimensão religiosa.
Devido a esse traço transversal do Dia de Acção de Graças na sociedade americana, os discursos políticos então proferidos são relevantes para percepcionar sintomas, não tanto de agendas partidárias concretas, mas da forma como essas sensibilidades interpretam as expectativas de um povo no âmbito de uma identidade comum.
Um pensador desta realidade, Sacvan Bercovitch, falou um dia de uma “retórica do consenso” que constituiria um solo partilhado pelos americanos, independentemente das suas sensibilidades políticas: a América como terra prometida; um povo eleito, predestinado; o espírito de missão – na defesa da democracia liberal, por exemplo; a responsabilidade individual; enfim, o sonho americano; ou seja, muitos dos traços que Max Weber, hoje contestado, identificou como a ética protestante e o espírito do capitalismo. Mas, acima de tudo, aquilo que Martin Luther King, na celebração de uma comunidade alargada, sintetizou no famoso discurso “Eu tenho um sonho.”
Democratas ou republicanos, mais ou menos radicais, partilham esse solo comum, o qual interpretam de acordo com ênfases específicas. Mais do que em ideologias, como as temos concebido na Europa, é na forma como essas ênfases se propõem agir sobre esse solo comum que se deve percepcionar o discurso político americano.
Por isso, não será de estranhar, por exemplo, que tanto o Presidente Obama como o Governador do Texas, Rick Perry – candidato a candidato republicano, tenham optado por discursos que dão relevo à acção de “normalização democrática” da América no mundo: o Presidente agradecendo às tropas americanas em missão noutros países, Perry recorrendo ao testemunho de um veterano do Afeganistão.
Há, obviamente, outros traços, mas creio que estes serão reveladores daquilo que poderá constituir um discurso político futuro, independentemente de quem seja a sua fonte; isto é, as ênfases serão distintas, o diálogo com as outras nações mais ou menos evidente, ou privilegiando eixos diferentes, mas persistirá sempre a forte crença de que a América deve ser esse “farol” da democracia e da liberdade. Afinal, “in God we trust.” "