quinta-feira, 20 de setembro de 2018

Um filme sobre a velhice?

Sim, pois Lucky é um olhar terno sobre a decadência do corpo e também sobre o mistério que a envolve: por que razão se colapsa quando tudo no corpo parece estar numa fluida sintonia? Porque se fixou o olhar numa imagem intermitente que nos envia para o imaginário de Twin Peaks? Aliás, ao longo do filme são várias as citações de homenagem a Twin Peaks, da luminosidade, a certos fragmentos cénicos, ao telefone vermelho e à misteriosa personagem cuja voz persiste no silêncio, aos equívocos (ambiguidade) da linguagem e dos encontros entre personagens- "You're nothing", que melhor e mais lúcida saudação do que esta?-, à óbvia presença de David Lynch. Talvez, mais do que a tudo isso, seja este filme uma homenagem a Harry Dean Stanton. Já o (re)vi várias vezes e vou continuar a (re)vê-lo... obsessivamente.

Uma leitura do "Cântico dos Cânticos"

Elas são inúmeras, divergentes, contraditórias (saudavelmente contraditórias, diria), estendendo-se ao longo dos tempos. Talvez hoje nos confinemos a uma vertente apenas, tomando-a como a leitura; mas é na pluralidade dos olhares que se faz a riqueza desta tradição em que nos movemos, uma tradição que, afinal, deve a sua riqueza à coexistência da pluralidade. Para melhor conhecermos, então, este prisma de olhares, recuemos ao século XII e às palavras de São Bernardo, monge cisterciense. Proponho-lhe que o leia, tomando como cenário um outro olhar, o de Marc Chagall: «Beija-me com ósculos da tua boca» (Cant 1,2). Quem fala assim? A esposa [do Cântico dos cânticos]. E quem é esta esposa? É a alma associada a Deus. E a quem fala ela? Ao seu Deus. [...] Não seria possível encontrar palavras mais doces para exprimir a ternura recíproca de Deus e da alma que estas do Esposo e da esposa. Tudo lhes é comum, não possuem nada próprio nem à parte. Única é a sua herança, única a sua mesa, única a sua casa, única até a carne que em conjunto constituem (Gn 2, 24). [...] Se a palavra «amar» convém especialmente e em primeiro lugar aos esposos, é compreensível que se dê o nome de esposa à alma que ama a Deus. A prova de que ela ama é que pede a Deus um beijo. Não deseja a liberdade, nem uma recompensa, nem uma herança, nem mesmo um ensinamento, mas um beijo, ao jeito de uma esposa casta, elevada por um santo amor e incapaz de esconder a chama que lhe arde dentro. [...] Sim, o seu amor é casto, pois ela deseja apenas Aquele que ama, e não alguma coisa que Lhe pertença. O seu amor é santo, porque ela não ama com um desejo pesado da carne, mas com pureza do espírito. O seu amor é ardente, pois, inebriada por este mesmo amor, esquece a grandeza de quem ama. Não é Ele, com efeito, que com um olhar faz tremer a Terra? (Sl 103,32). E é a este que ela pede um beijo? Não estará embriagada? Sim, está embriagada de amor pelo seu Deus. [...] Que força, a do amor! Que confiança e que liberdade no Espírito! Não há maneira mais clara de manifestar que «o amor perfeito afasta o temor» (1Jo 4, 18).

quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Lembram-se de "As asas do desejo"?

E daqueles versos de Peter Handke, Als das Kind Kind war? Eis o contexto remoto no qual a ressonância desses versos radica. É ele o da Primeira Epístola de Paulo aos Coríntios 12,31.13,1-13: Irmãos: Aspirai com ardor aos dons espirituais mais elevados. Vou mostrar-vos um caminho de perfeição que ultrapassa tudo: Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos. se não tiver caridade, sou como bronze que ressoa ou como címbalo que retine. Ainda que eu tenha o dom da profecia e conheça todos os mistérios e toda a ciência, ainda que eu possua a plenitude da fé, a ponto de transportar montanhas, se não tiver caridade, nada sou. Ainda que distribua todos os meus bens aos famintos e entregue o meu corpo para ser queimado, se não tiver caridade, de nada me aproveita. A caridade é paciente, a caridade é benigna; não é invejosa, não é altiva nem orgulhosa; não é inconveniente, não procura o próprio interesse; não se irrita, não guarda ressentimento; não se alegra com a injustiça, mas alegra-se com a verdade; tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O dom da profecia acabará, o dom das línguas há de cessar, a ciência desaparecerá; mas a caridade não acaba nunca. De maneira imperfeita conhecemos, de maneira imperfeita profetizamos. Mas quando vier o que é perfeito, o que é imperfeito desaparecerá. Quando eu era criança, falava como criança, sentia como criança e pensava como criança. Mas quando me fiz homem, deixei o que era infantil. Agora vemos como num espelho e de maneira confusa, depois, veremos face a face. Agora, conheço de maneira imperfeita; depois, conhecerei como sou conhecido. Agora permanecem estas três coisas: a fé, a esperança e a caridade; mas a maior de todas é a caridade.