quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Algumas linhas do texto de Jean-Sébastien Chauvin

a propósito de Brooklyn Village, de Ira Sachs [Cahiers du Cinéma, 725: 35]: "Cette douceur, dont le filme ne se départit jamais, tient au regard d'Ira Sachs, à cette sorte de tempérance d'honnête homme, son art mesuré et profond de la description des vies qu'il filme, où le détail prévaut sur la superstructure, la sublime insignifiance des choses ayant une portée aussi grand que le climax d'une scène intelligemment scénarisée. Il faut voir l'émotion de ces plans tout simples..."

Diante dos nossos olhos

é o título de um ensaio meu publicado no número 5 da revista Fátima XXI, sobre a figuração do anjo. Aqui vos deixo um excerto: "como enunciar algo que ilude as fronteiras do nosso quotidiano? O compositor inglês contemporâneo Patrick Hawes, a quem devemos um álbum comovente intitulado Anjos [Angels], escreve a propósito: “Nunca vi um anjo e, no entanto, a minha consciência da presença de anjos tem-se tornado cada vez mais forte ao longo destes últimos anos.” (Hawes, 2013) Num depoimento disponível na internet Hawes é filmado aproximando-se de uma igreja, em cujo limiar recorda uma experiência que seu pai terá vivido: “Este foi o sítio onde o meu pai viu anjos. Foi já para o fim da tarde, três ou quarto figuras, juntas, rodeadas de luz, bastante indistintas, mas discerníveis como tendo forma humana. E as figuras estavam a dançar, e não deram por ele. E ele dizia que era quase como se houvesse música no ar.” Foi, também, com esta experiência em mente que ele concebeu o referido álbum, onde contou com os poemas escritos pelo seu irmão, o reverendo Andy Hawes. Será, no entanto, talvez, no Prelúdio I do Anjo, um solo de piano onde as palavras estão ausentes, que mais intensamente o poder evocador da música pode ser sentido."

Verás coisas maiores do que estas

Ao longo dos anos fui-me cruzando, por aqui, com uma jovem com um lenço na cabeça, à semelhança de muitas outras mulheres que estão a passar por tratamentos de quimioterapia. Já há algum tempo, cruzámo-nos uma vez mais, mas desta feita já não trazia o lenço; o cabelo, ainda fraco, estava arranjado. Tinha certamente acabado de sair do cabeleireiro. Estava maquilhada, andava célere, com um sorriso aberto que guardo na memória. Aquele sorriso dizia, como podem ver, estou aqui e estou feliz. Já há algum tempo que não passamos um pelo outro, mas recordei hoje desse seu sorriso ao ouvir um versículo de João: Verás coisas maiores do que estas.

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

De novo as eleições americanas (outro texto do DN)

Ao deambular pelas ruas de Florença, a escritora americana Mary McCarthy ficou impressionada com as fachadas dos palácios florentinos que, segundo ela, mais faziam lembrar fortalezas ou masmorras. Acima de tudo, era a ausência de hospitalidade que elas pareciam denunciar. Sensivelmente na mesma altura, o antropólogo inglês Geoffrey Gorer assinalava o facto de, nas habitações americanas, tudo estar sujeito ao escrutínio exterior: nem sebes, nem muros, nem portões separam a casa da rua. E acrescentava algo de interessante, estes edifícios são exemplos vibrantes dessa integridade transparente que os americanos gostam de pensar ser a sua característica mais meritória. Eis-nos, portanto, face àquelas que seriam duas posturas distintas, a europeia e a americana. A transparência exibida pela arquitectura, sinalizaria, afinal, um traço de carácter: a sinceridade. Daí o culto de uma ética da informalidade, da espontaneidade, do tratamento pelo nome próprio, da expressão pública dos sentimentos, algo a que Trump tem sistematicamente recorrido. Se Hillary Clinton não estiver atenta a este aspecto neste momento crucial; se preferir esconder a sua realidade por detrás de uma fachada semelhante à de um palácio florentino, em vez de, literalmente, revelar a sua verdadeira radiografia clínica, e assim desmontar as dúvidas que se têm colocado, então provavelmente estará a hipotecar o seu futuro. Longes vão os tempos em que se conseguia ocultar a fragilidade física do Presidente Kennedy, ou o declínio mental do Presidente Reagan.

Um contributo para a compreensão da América (texto publicado no DN)

The Nine Nations of North America é o título insólito de uma obra publicada em 1981 por Joel Garreau. Nela, Garreau defendia a tese segundo a qual, sob umas fronteiras “artificiais” – os países - identidades culturais e económicas profundas deviam ser reconhecidas: as tais nove nações. Cito dois exemplos, Ecotopia – designação tomada do romance utópico de Ernest Callenbach, com capital em São Francisco, estendendo-se ao longo da costa oeste, da Colúmbia Britânica ao norte da Califórnia; e Mexamérica, com capital em Los Angeles, formada pelo sul da Califórnia e do Arizona, por grande parte do Texas, do Novo México e – algo que perturbaria o excêntrico muro de Trump – o norte do México. Esta tentativa de desvendar matrizes identitárias ancoradas em horizontes geográficos, ecoa Letters from an American Farmer (1782), o clássico iluminista de Michel Guillaume Jean de Crèvecoeur que, ao adquirir a cidadania americana, passaria a chamar-se John Hector St. John of Crèvecoeur. Aí, na célebre carta, “What is an American”, ele identifica o perfil da jovem nação – o melting pot, associando comportamentos cívicos ao enquadramento institucional emergente, ou à sua ausência (a fronteira), nas circunstâncias geográficas do Novo Mundo. Assim se delineia uma linha de pensamento que Thoreau revisitará, e na qual Garreau se inscreve. No entanto, esta leitura esquece uma outra dimensão dos Estados Unidos, aquela em que os matizes identitários se ancoram na retórica dos colonos puritanos: terra prometida, povo eleito, espírito de missão, ética da responsabilidade individual. Ora, o início da década de 1980 recupera-a, introduzindo-a explicitamente no argumento político. Penso na investidura do Presidente Reagan onde ele enfatiza a sua actualidade ao recordar o puritano John Winthrop que, ainda a bordo do Arbella, associa o lugar que os aguarda à cidade no monte (Mateus 5, 14). Uma leitura apressada estabeleceria uma razão de causa-efeito entre este argumento e o conservadorismo reaganiano. A questão é mais complexa, pois o legado de Winthrop fora já evocado pelo Presidente Kennedy ao proclamar o desígnio da Nova Fronteira, e seria retomado em 1997, pelo Presidente Clinton, na segunda investidura, ao mencionar a promessa da Terra Prometida. Clinton revê-o, porém, sob o signo iluminista que consagra a universalidade sabiamente ampliada por Martin Luther King no discurso de Washington. Esta é, portanto, uma retórica transversal à sociedade americana e indissociável da sua dimensão mítica. Uma retórica Branca, Anglo-Saxónica e Protestante, dir-se-á. E, todavia, mítica. Curiosamente, pertence a um republicano, Clint Eastwood, uma das interpelações estéticas mais profundas desta dimensão. Ainda na primeira metade da década de 1980, este realizador toma a forma de expressão artística americana por excelência - o cinema, e o seu género privilegiado - o western, para a ela proceder em Pale Rider. Entre nós este filme foi intitulado Justiceiro Solitário, o que rasura as reverberações bíblicas - em Apocalipse 7, 8, o cavaleiro que representa a Morte, monta a pale horse. São muitas e subtis as formas como Eastwood perturba o mito; aponto apenas esta: o protagonista é, paradoxalmente, um pregador e um pistoleiro que, qual fantasma, surge do reino dos mortos ao som das palavras do Salmo 23, aqui usadas no enterro de um… cão. Estamos longe da solenidade em que este Salmo é amiúde lido e dos protagonistas unidimensionais recorrentes no western. Tal como a América confrontada com os fantasmas da sua História recente, dos resquícios da II Guerra Mundial ao mais recente Vietname, também no filme os fantasmas predominam; neles é uma alteridade que emerge, o que suscita outra questão. Haverá uma certa tendência para imaginar uma idade do ouro em que a democracia ali decorreria sem discursos perturbadores do normal funcionamento institucional. Basta, no entanto, olhar para os tempos da Revolução Americana para reconhecer as múltiplas tensões e contradições que então se viveram. Lembre-se quão intensos foram os debates entre os que defendiam uma organização baseada nos exemplos de Esparta, ou de Roma ou de Atenas, entre governo estadual e central, e na solução mista que acabaria por prevalecer. Lembre-se os inúmeros movimentos de base, não raro violentos, que a historiografia recente tem vindo a investigar. “Contradigo-me?/ Muito bem, então, contradigo-me / (sou imenso, contenho multidões)”, proclamou Walt Whitman, poeta da epopeia americana. Reconhecer que essa imensidão implica a presença da alteridade, revela, por um lado, bom senso (um eco filosófico iluminista vindo da Escócia pela mão de Lord Kames) que se repercutiria no sistema de checks and balances, e, por outro, abertura para as vozes críticas face ao governo. Um nobre exemplo destas será Henry Adams, autor da famosa autobiografia The Education of Henry Adams, e membro da aristocracia política familiar iniciada com o Presidente John Adams. A ele se devem censuras a Washington – leia-se, ao governo – tão radicais que banalizam muitas das investidas verbais dos populismos que, à direita e à esquerda, hoje se fazem ouvir. Afinal, embora com matizes distintos, têm sido vários os movimentos que não se inscrevem na matriz fundadora, do populismo oitocentista do People’s Party, ao anarquismo do início do século XX, ou ao socialismo de Henry Wallace que Oliver Stone tentou resgatar em A História não contada dos Estados Unidos. Mais ou menos fugazes, eles não têm, contudo, conseguido rasurar essa matriz. Resta saber se os partidos que a representam, são capazes de reconhecer e dar resposta aos sintomas em que populismos vários hoje se alimentam. Nota final, quando se refere a presença da língua espanhola na realidade americana actual, ignora-se um facto relevante: mais do que uma língua é uma diversidade cultural que ali se sinaliza. Na forma como esta diversidade se integrar e ajudar a reescrever essa matriz, e como esta a saberá acolher, reside muito da vitalidade que, no futuro, uma América sedimentada nas contradições poderá ter.

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

The Light of the World (1851–3), de William Holman Hunt

Evangelho segundo S. Lucas 8,16-18: Naquele tempo, disse Jesus à multidão: «Ninguém acende uma lâmpada para a cobrir com uma vasilha ou a colocar debaixo da cama, mas coloca-a num candelabro, para que os que entram vejam a luz. Não há nada oculto que não se torne manifesto, nem secreto que não seja conhecido à luz do dia. Portanto, tende cuidado com a maneira como ouvis. Pois àquele que tem, dar-se-á; mas àquele que não tem, até o que julga ter lhe será tirado». Comentário de São Cromácio de Aquileia (?-407): "O Senhor chama aos seus discípulos «luz do mundo» (Mt 5, 4) porque, iluminados por Ele, que é a luz eterna e verdadeira (Jo 1,9), eles próprios se tornam uma luz no meio das trevas. Porque Ele é o «Sol da justiça» (Mal 3,20), o Senhor pode chamar aos seus discípulos «luz do mundo»: é por meio deles que irradia sobre o mundo inteiro a luz da sua própria ciência. [...] Iluminados por eles, também nós passámos das trevas à luz, como diz o Apóstolo: «Outrora éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor; vivei como filhos da luz» (Ef 3,8). E noutro passo: «Não sois filhos da noite nem das trevas, mas sois filhos da luz e filhos do dia» (1Tess 5,5). Com razão diz também S. João na sua primeira epístola: «Deus é luz» (1,5); e «quem permanece em Deus está na luz» (1,7). [...] Portanto, uma vez que temos a felicidade de estar libertos das trevas do erro, devemos andar sempre na luz, como filhos da luz que somos. [...] Por isso diz o Apóstolo: «Vós brilhais entre eles como estrelas no mundo, ostentando a palavra da vida» (Tess 2,15). [...] Aquela lâmpada resplandecente, que foi acesa para nossa salvação, deve brilhar sempre em nós. [...] Por isso é nosso dever não ocultar esta lâmpada da lei e da fé, mas colocá-la sempre no candelabro da Igreja para salvação de todos, a fim de nós próprios gozarmos da luz da sua verdade, e de com ela serem iluminados todos os crentes."