segunda-feira, 3 de outubro de 2016
Philip Roth, Newark e a América
É raro surgir nos nossos jornais um artigo tão informado e certeiro como este de Isabel Lucas, no Público. Aqui vos deixo o início deste extenso texto:Lutar, ter sucesso e integrar uma identidade. É a pastoral aprendida por gerações de imigrantes, entre eles os pais de Saul Bellow e os de Philip Roth. Os dois desmontaram-na a partir de territórios pessoais. A Chicago da Depressão e a Newark dos riots, uma metáfora da falha americana.
Os pés pisam a plataforma e vem ao rosto um ar frio que faz despertar do torpor de seis horas de viagem. O último comboio do dia é mais lento. Grande parte do trajecto entre Boston e Newark é feito ao ritmo de um sono pouco profundo, corpos mal acomodados nos bancos e as luzes da rua a iluminarem a carruagem como um grande ecrã a passar, veloz, imagens no escuro. São três e meia da madrugada e agora é só o frio da estação e a náusea súbita quando se abre a porta para o grande átrio da Penn Station de Newark.
Urina, vómito, suor de muitos dias, um bafo quente que carrega toda a repulsa e gela mais do que o frio. Como avançar? Há dezenas de homens e mulheres deitados no chão, encostados às paredes, arrumados nos degraus como em beliches. Abrigam-se da temperatura negativa da rua e dormem ali. Da penumbra dos corredores à luz branca dos espaços centrais, quase não há um lugar vazio. Junto a uma das portas uma mulher está sentada. Parece descascar uma laranja, mas mais perto percebe-se que não tem nada nas mãos, é só um gesto que replica outro gesto. Quem passa tem de fazer uma espécie de gincana por entre vultos, corpos que parecem trouxas de roupa. Há uns olhos abertos a fixarem-se noutros olhos abertos e o entreolhar é insuportável para ambos.
A partir da uma da manhã e mais ou menos até às cinco, as estações de comboios da América abrem as portas aos sem-abrigo e nesses momentos, naqueles espaços, não cabe a cumplicidade; ela não é suportável. Nessas noites, na Penn Station de Newark, como em muitas outras estações por todo o país, há apenas quem não queira ser visto e quem não queira ver.
Os sem-abrigo nos Estados Unidos eram um número vago entre os 2,3 e os 3,5 milhões em 2000 (dados da Amnistia Internacional). Quinze anos depois, numa noite de Janeiro de 2015, eram 565 mil os que dormiam na rua e sete milhões os que corriam o risco de não ter brevemente onde dormir, números do último relatório da federação National Alliance to End Homelessness que indicava ainda que a taxa de sem abrigo diminuíra no último ano, de 18,3 para 17,7 por cada dez mil habitantes.
Para o orçamento para 2017 — o ano em que deixa a Casa Branca — Barack Obama propôs 11 mil milhões de dólares para gastar nos próximos dez anos na ajuda a famílias sem casa ou em risco de as perder. A iniciativa do Presidente em final de mandato pode enquadrar-se politicamente na difícil resposta à questão que Philip Roth formulou na literatura e colocou na voz de Nathan Zuckerman: “Que fazer com esta coisa terrivelmente significativa que são os outros?” Zuckerman, escritor e alter ego de Roth, era um homem adulto quando formulou a pergunta, logo depois de contar como, aos dez anos, aprendeu “toda a crueldade da vida” ao ler um romance sobre basebol. Mais tarde, mais cínico, mais desiludido, diria: “compreender as pessoas não tem nada a ver com a vida. O não as compreender é que é a vida.Há edifícios novos, torres que exibem nomes de seguradoras, bancos, multinacionais. Percorrer hoje as ruas de Newark é assistir a todas as camadas que fizeram a sua história. Elas estão expostas como feridas abertas. A cidade do sonho imigrante, a cidade mutilada e a que tenta recuperar de todos os traumas foi a mesma onde Philip Milton Roth nasceu em 1933, filho de um vendedor de seguros, judeu, e onde aprendeu a “americanidade” no liceu de Weequahic, entre adolescentes como ele. “Os nossos pais eram, com raras excepções, os descendentes da primeira geração de imigrantes pobres vindos da Galícia e da Rússia polaca no virar do século, quase todos criados no seio de famílias de Newark onde se falava iídiche e onde a ortodoxia religiosa ainda não começara a ser seriamente desgastada pela vida americana. Por muito que falassem sem sotaque e com sonoridade americana, por muito secularizadas que estivessem as suas convicções religiosas, por muito competente e convincente que fosse o seu estilo de vida de americanos da classe média-baixa, continuavam a ser influenciados pela educação recebida na infância e pelos fortes laços que vinculavam os seus pais a costumes e percepções que aos nossos olhos eram antiquados, socialmente inúteis e próprios do velho mundo.” Tudo se desenrolava e ganhava raízes à volta “do fenómeno mais intrinsecamente americano que tínhamos ao nosso alcance”, conta Roth em Os Factos, Autobiografa de Um Romancista (Dom Quixote, 2014). Esse fenómeno era o basebol.
Chega-se ao parque de Weekquahic depois de atravessar a baixa de Newark, de subir uma colina e percorrer casas com jardins mais ou menos cuidados onde vivia a comunidade judaica e onde hoje moram sul-americanos e uma comunidade negra que não sucumbiu à pobreza, à droga e ao crime.
Décadas depois, o que separa este imenso jardim no Sul de Newark numa tarde de Verão, onde adolescentes jogam basebol, da estação na mesma cidade onde numa noite de Inverno se abrigam centenas de pessoas depois de um nevão que paralisou a costa leste do país? Não é apenas o tempo, cronológico ou atmosférico, mas uma falha.
Pastoral Americana (D. Quixote, 1999), o romance de Philip Roth publicado em 1997 (que acaba de ser adaptado ao cinema por Ewan McGregor e com estreia marcada para Novembro), é um livro sobre essa falha. Humana e social, individual e colectiva. Mas também sobre a ideia de decência, virtude, sucesso e a derrocada dos homens grandes que afinal são homens comuns ou de como o progresso e a evolução não seguem um sentido necessariamente ascendente e positivo. Foi o livro a seguir ao qual Roth afirmou numa entrevista à televisão “se não sou americano não sou nada”, em vez de dizer “se não sou judeu não sou nada”, como se esperava então de um judeu americano.
Saul Bellow, outro escritor judeu, 18 anos mais velho do que Roth, dissera o mesmo em 1953 na voz do protagonista de As Aventuras de Augie March (Quetzal, 2010) outro livro sobre a condição americana. “Sou americano, nascido em Chicago.” Roth leu esse Bellow e aprendeu que um escritor judeu podia escrever sobre isso de forma inovadora, jogando com o humor, numa linguagem moderna, vibrante, sem fazer “relações públicas” — termo usado por Bellow — no combate ao anti-semitismo. Para Roth, o rapaz de Newark, como para Bellow, o imigrante do Canadá que cresceu em Chicago, ser judeu não era um absoluto, mas ser americano sim. Com todas as dúvidas, inseguranças e desconforto que uma afirmação dessas podia trazer. É esse o material de escrita de Roth.
O colapso
Às três e meia da madrugada de um dia de semana, na Penn Station de Newark, a maior central de transportes do estado de New Jersey, por onde todos os dias passam mais de 600 mil passageiros em trânsito para Nova Iorque, Filadélfia, Washington, Boston e para os subúrbios da cidade há uma espécie de vertigem de civilização. Fundado em 1935, o edifício actual é controlado pela polícia da Port Authority, entidade que gere as infra-estruturas na zona portuária entre Nova Iorque e New Jersey, terminais de navios, aeroportos, estações de comboio e de autocarro. Agentes de farda azul com as inicias PA,PD controlam quem entra e sai e ficam à porta quando à noite a estação abre para quem se quer abrigar do frio. “Ninguém vê isto a não ser eles mesmos e quem lhes abre as portas. Ninguém passa nestes sítios a esta hora, e como ninguém vê, não existe, estas pessoas não existem, são invisíveis para o mundo.” O homem que diz isto não tem expressão na voz nem no olhar. É um polícia com uma arma no coldre, onde repousa a mão direita por dentro do casaco quente. Vive perto, “meia hora de autocarro”, precisa, e pergunta o que se faz ali àquelas horas com a mesma sonolência com que falou até então, apontando a praça de táxis em frente. “Olhe que não são horas nem lugar por onde se ande assim.” Parece tão derrotado quanto o protagonista de Pastoral Americana depois de ter “perdido” a filha e de o pai lhe ter dito que Newark depois de 1967 era a pior cidade do mundo, devastada por um trio mortal: “impostos, corrupção, raça”, uma cidade habitada por “gente vinda de todo o lado e que se estava nas tintas para o destino de Newark”. Será?
Nathan Zuckerman conta a história. Ele nasceu em Newark, como Philip Roth que o criou à sua imagem, filho de imigrantes judeus que, como todos os que ali chegavam, queria seguir a pastoral americana: “a luta ritual pós-imigrante pelo sucesso”, como a definiu Seymour Irving Levov, conhecido como o Sueco, personagem central de Pastoral Americana, romance-síntese de uma identidade carregada de contradições com génese na América e, nos casos de Roth, Zuckerman e do Sueco, formada em Newark, a cidade que um dia se tornou “impossível” porque subverteu essa pastoral. Quando é que tudo entrou em colapso?
Na cidade, foi com os motins de 1967, um protesto violento contra as políticas sociais do Presidente Lyndon B. Johnson, que tomou conta das ruas de muitas outras cidades americanas e assumiu proporções dantescas em Newark. O sucessor de John Kennedy parecia incapaz de cumprir as promessas de igualdade de oportunidades independentemente da raça. A comunidade, constituída por irlandeses, polacos, italianos, americanos brancos de várias gerações, sofrera alterações desde a década de 50, quando milhares de negros migrados da forte segregação do Sul se instalaram, respondendo à oferta de emprego que crescia na indústria e nos serviços. No final dos anos 60, representavam mais de 50% da população de Newark, mas estavam no fundo da pirâmide social. Eram os mais pobres, os menos representados, sentiam-se à margem no trabalho, na educação e na riqueza. Toda a tensão acumulada explodiu nas ruas depois de dois polícias brancos terem prendido um taxista negro. Foram seis dias dos mais negros na história recente da América. Morreram 26 pessoas, houve centenas de feridos e a cidade nunca mais se recompôs. Quem pôde fugiu. E esse passou a ser o destino trágico de Newark até hoje: só parece ficar quem não pode sair.
No livro, o colapso foi o crime da filha do Sueco. Num dia de 1968, Merry fez explodir um edifício dos Correios em protesto contra os valores americanos que justificavam a guerra do Vietname. Era a iniciação do Sueco ao descalabro, o “desmantelamento de uma América totalmente nova, a filha e a década fragmentando em mil pedaços a sua forma particular de raciocínio utópico, a praga América infiltrando-se no castelo do Sueco, e aí, infectando todos. A filha que o leva para fora da sonhada pastoral americana e o mergulha em tudo o que é a sua antítese e o seu inimigo, na fúria, na violência e no desespero da contra-pastoral — na primitiva raiva americana”, escreve Zuckerman pelas mãos de Roth sobre a perplexidade que se experimenta perante a queda trágica. Sobre o momento em que o “impossível acontece”.
É esse o território de partida nos romances de Philip Roth, e já o fora nos de Saul Bellow, uma espécie de fantasma que espreita. Uma força transformadora de desconforto, incómoda que está muito ligada à sua afirmação americana, à identidade. Newark, como a Chicago de Bellow são uma metáfora dessa sensação de ruptura, de disrupção. A negação da linha de evolução permanente.
A ideia original para o romance foi a de uma rapariga bombista. Era a mancha a cair na imagem de pureza da adolescente feminina. Demorou anos a apurar. Ela pertencia à quarta geração de uma família de imigrantes de Newark, filha de um herói local, o melhor jogador de basebol do liceu de Weequahic, frequentado sobretudo por judeus, herdeiro de uma fábrica de luvas. O Sueco era louro como um ariano, mas com apelido judeu, um símbolo de integração, o rapaz exemplo para todos e não apenas para a comunidade judaica a que pertencia. “Os sentimentos judaicos contraditórios provocados pela sua presença eram, simultaneamente, aplacados por ela; a contradição dos judeus, que ora se sentem adaptados ora não se sentem adaptados, que ora insistem que são diferentes e ora não o são, resolvia-se com o espectáculo triunfante deste Sueco que, afinal, era mais um Seymour do nosso bairro, cujos antepassados tinham sido Solomons e Sauls e que, por sua vez, haviam de gerar Stephens que haviam de gerar Shawns. Onde é que se encontrava nele o judeu? Não se conseguia encontrá-lo, e contudo, sabia-se que estava lá. (...)”, lê-se no início de Pastoral Americana. O Sueco era um instrumento da história por toda essa simbologia de integração ao mesmo tempo que anos depois a filha também seria por contestar o movimento da História.
O leitor vai sabendo de tudo isto pela voz do narrador, Nathan Zuckerman, o escritor que Philip Roth criou em 1974 em My Life as a Man e que seria protagonista e/ou narrador de mais nove romances de Roth. Aqui ele tem sessenta e tal anos, está deprimido e encontra o seu herói de infância, o Sueco, no momento em que ele tem uma segunda família. Antes, casara-se com a Miss New Jersey 1949, católica de Newark, e foram viver longe do bairro judeu, numa terra nos subúrbios. É aí que em 1968, aos 16 anos, a sua filha põe uma bomba e mata um homem. Zuckerman, ao serviço de Roth, quer chegar à consciência desse homem e pô-la em palavras, mas fá-lo em contraponto com outro estado de consciência: a de Zuckerman.
Zuckerman e o Sueco são dois pólos opostos — pelo seu íntimo — de uma mesma realidade, social, religiosa, local. De um lado, o obcecado, torturado pelo conflito interno, tantas vezes assaltado por sentimentos de raiva e frustração e que se salva com a escrita; e do outro, “o banal e convencional”, acredita Zuckerman, alguém que se define pela “ausência de valores negativos e mais nada”. Zuckerman quer escrever sobre ele partindo de um pergunta: qual é, onde está, como se manifesta a subjectividade do Sueco? A construção da narrativa, de que o leitor se sente parte como espectador privilegiado, é a perseguição dessa essência pelo escritor. O livro foi publicado, a crítica aplaudiu e ganhou o Pulitzer em 1998. Muitos viram nele um romance político, de alguém que parecia ter mudado de lado e surgir como um neoconservador.
No entanto, como refere Claudia Roth Pierpoint na biografia literária Roth Unbound (2012), nos seus livros ele não dá nunca uma única perspectiva das coisas. A autora, que apesar de partilhar o mesmo apelido não tem parentesco com o escritor, cita-o: “Eu não escrevo sobre as minhas convicções. Escrevo sobre as consequências cómicas e trágicas de convicções questionáveis”. Roth queria dizer que não faz política mas literatura e por isso pode falar de tudo da mesma forma que Saul Bellow já fizera em As Aventuras de Augie March. “Estávamos em pleno Inverno, e o frio e a humidade eram terríveis; de modo que percorrer a cidade nos eléctricos aracnídeos, em viagens que duravam horas, deixava qualquer um apalermado como um gato ao pé do fogão, por causa do aperto lá dentro. (...) Nunca existiram civilizações sem cidades. Mas e cidades sem civilização? Seria uma coisa inumana, se fosse possível, tantas pessoas a viverem juntas sem gerar nada umas para as outras. Não, mas não é possível, e a desolação gera o seu próprio fogo, e portanto isso nunca acontece.”
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