sexta-feira, 22 de abril de 2016
Leonídio Paulo Ferreira, no Diário de Notícias, a propósito do bardo
Uma trupe de marinheiros britânicos, um público de chefes africanos e um intérprete de português. Foi assim, em setembro de 1607 num navio junto à Serra Leoa, que Hamlet foi pela primeira vez encenado fora da Europa e também pela primeira vez traduzido. Lucas Fernandez, que fontes da época dizem que falava português perfeito, foi traduzindo cada frase da peça de William Shakespeare para a assistência, onde estava o seu cunhado e rei daquela parte de África. Velho amigo dos portugueses, o povo temne enviava a elite para estudar em Lisboa com os jesuítas e nem o domínio filipino afetou a aliança.
"O episódio é conhecido, embora não consiga identificar um registo coevo entre nós", explica Mário Avelar, professor catedrático de Estudos Anglo-Americanos. E acrescenta: "Parece-me que é, acima de tudo, significativo por revelar a importância que Shakespeare tinha para os seus contemporâneos, e, em particular, a sua popularidade. Resta, todavia, a questão de saber que Hamlet foi exibido? Com efeito, na altura já haviam sido editadas duas versões de Hamlet, o primeiro Quarto (assim designado devido à forma como a folha era dobrada), vindo a lume em 1603, que terá sido escrito a partir da memória, eventualmente por um ator que teria participado numa encenação, e o segundo Quarto, publicado no ano seguinte, e que já revela uma extensão considerável, idêntica àquela que vemos hoje em dia serem levadas à cena. Terá sido um destes Hamlets?" O académico, em conversa com o DN, avança ainda outra hipótese: "Ou terá sido uma modelação de uma destas versões? Uma versão truncada, por exemplo?"
O navio que serviu de palco foi o Red Dragon. Ia a caminho do Oriente, com o capitão William Keeling a ancorar na foz de um rio da Serra Leoa enquanto esperava que a tripulação se curasse do escorbuto e outras maleitas. Que tenha encontrado negros a falar português não deve surpreender, como nota o historiador João Paulo Oliveira e Costa, pois "os portugueses frequentavam a região há cem anos e alguns ficaram a viver lá". Contudo, não se pode falar do português na África como língua franca, quando muito era "falado nas praias frequentadas pelos portugueses". Segundo o autor de História da Expansão e do Império Português (A Esfera dos Livros, 2012), é na Ásia que se pode afirmar tal. "Ao longo do século XVI, os portugueses foram os únicos europeus que frequentaram todos os mares da Ásia. Por isso, o português tornou-se língua franca e holandeses e ingleses celebraram os primeiros tratados com Estados asiáticos em língua portuguesa."
Ora é esse domínio militar e comercial de Portugal no Índico que navios como o Red Dragon, que seguia para a Indonésia, pretendiam quebrar. Numa anterior viagem, a embarcação chegou a visitar feitorias portuguesas, assistindo a combates com os cobiçosos holandeses. Será, aliás, numa batalha com a Marinha holandesa que o Red Dragon será afundado em 1619, talvez ainda com algum marinheiro dos que tinham entrado na peça sobre o príncipe dinamarquês.
Navio Red Dragon foi palco de várias peças de Shakespeare como diplomacia cultural
O episódio de Hamlet em África foi pioneiro mas não único e sabe--se que outras peças de Shakespeare foram encenadas em navios, quase como diplomacia cultural. Mas traduções clássicas, essas, limitaram-se de início à Europa, como sublinha Mário Avelar: "Os textos dramáticos de Shakespeare começaram a ser divulgados na Europa continental ainda em vida do autor. As primeiras traduções em alemão datam de 1624, ou seja, no ano seguinte à publicação do Primeiro Fólio, da responsabilidade de dois atores que haviam trabalhado com Shakespeare, e que consolidaria um cânone inicial. Surgiram depois as traduções francesas, já no século XVIII, o que não significa que ele não tenha continuado a ser levado à cena por essa Europa fora."
Em Portugal, foi preciso esperar mais pelas traduções do bardo de Stratford-upon-Avon. Hamlet só se popularizou em finais do século XIX graças à tradução por D. Luís, como notou em recente entrevista ao DN Joanna Burke, diretora do British Council.
Sobre a representação pelos marinheiros ao largo de África, Diogo Infante, que já foi Hamlet em palco, diz achar "absolutamente credível uma encenação num navio". E sublinha que "a grande vantagem do teatro é a capacidade para se transpor no tempo e no espaço". Para o ator, basta pensar na simplicidade do Globe Theater da época de Shakespeare, reconstruído em Londres, com a estrutura em madeira.
Nunca se saberá como Lucas Fernandez traduziu a primeira fala de Hamlet "Who"s there?". Pode ter sido "Quem está aí?, como fez Sophia de Mello Breyner, ou "Quem vem lá?, a opção do brasileiro Péricles Eugênio da Silva Ramos . Mas é inegável que esta encenação de "Hamlet num cenário afro-português" (assim o descreve uma History in Africa publicada por Cambridge) faz parte da história do genial inglês que viveu entre 1564 e 1616 e cujos 400 anos da morte se assinalam amanhã.
Como diz Mário Avelar, autor de O Essencial sobre William Shakespeare (INCM, 2012), "nunca ninguém como Shakespeare foi tão longe na capacidade de verbalizar a complexidade do ser humano, as nossas contradições, aquilo que persiste nos espaços mais recônditos do inconsciente, aquilo que nos eleva aos atos mais heroicos e que faz de nós seres desprezíveis. Falstaff, ele sintetiza toda essa generosidade, os instintos básicos, o prazer e a melancolia, também. E não posso deixar de acentuar esta palavra, verbalizar. Nunca ninguém, como ele, levou tão longe o poder da palavra, o seu poder de nos revelar".
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