terça-feira, 10 de novembro de 2015
O cerco à Assembleia da República vivido pelo protagonista de "Pentâmetros Jâmbicos"
CAPÍTULO 21 de Pentâmetros Jâmbicos, intitulado "Cercos e scones "
O Senhor estava lá!
Chá preto e scones, eis uma prova de que Deus existe, pensou o Carlos. Para logo dizer para si, perdoai-me, Senhor, ‘tava a brincar. Depois pegou no porta-moedas e deitou contas à vida. O Vítor emprestou-me o Manual de Mineralogia do Dana, versão de Klein e Hurlbert que eu precisava de comprar. Se m’ atirar a umas noitadas a fazer fichas não só poupo o dinheiro do livro como das fotocópias. Além disso, já são duas horas. Se não me lembrar do almoço, sempre ficam mais uns trocos.
Moral da história, posso muito bem assentar arraiais nas Vicentinas, beber um chazinho e comer uns scones.
Como ainda era cedo, decidiu ir até ao jardim do Princípe Real, sentar-se a fazer horas e aproveitar para dar uma vista d’olhos pelo livro. No entanto, logo após a leitura do índice, a perspectiva dos scones com manteiguinha a derreter, acompanhadinhos com um chazinho quentinho, assentou arreiais na sua imaginação.
Em breve começou a salivar.
Tenho que combater esta gula, pensou. Exercício físico! O que eu preciso mesmo é de exercício físico. Vamos lá dar um passeio a pé para distrair. Levantou-se e começou a descer, ao acaso, em direcção a S. Bento. Veio-lhe à ideia o Eclesiastes, seu momento predilecto do Livro, e uma melodia que diria mais ou menos assim: Eu não sei se hei-de fugir / ou morder o anzol / Já não há nada de novo / aqui debaixo do sol. Aliás, já os Byrds se tinham lembrado disso: for everything there is a season / and a time for every purpose under the heaven.
Ai Cesário, pensou, que melancolia nesta luminosidade. E reconfortado com a pena que sentia de si próprio, lá seguiu a cantarolar os pássaros com y.
Um estranho e intenso rumor, em breve começou a chegar aos seus ouvidos. Quanto mais descia e se aproximava de São Bento, mais nítido era o rumor. Gritos, palavras de ordem, canções revolucionárias, toldavam os céus de Lisboa nessa tarde cheia de sol. Mais uma manif, pensou. Será que estes fulanos não se cansam com manif atrás de manif, prosseguiu nos seus devaneios, com os scones em mente.
E, tal como ele amiúde poderia constatar ao longo da vida, porque a perspicácia não era, de facto, uma das suas mais evidentes virtudes, o Carlos, mais uma vez, enganou-se.
Aquela não era uma manif qualquer, ou, pelo menos, não estava destinada a ser referenciada, historicamente, como uma manif qualquer. Esta não era também aquilo que, tecnicamente, poderia ser considerado uma manif, mas sim um cerco, um cerco à, vá-se lá ver, Assembleia em São Bento. Lá dentro estavam os deputados, nos seus assentos, amarrotados, sonolentos, suados e cheiros de fomeca, e cá fora estavam os operários da construção civil... em festa.
E, mais uma vez, sem saber muito bem como, o Carlos despertou no centro da História.
Deambulando, sem rumo certo, e já sem se lembrar dos scones, lá se foi aproximando das escadarias da Assembleia. Por todo o lado, havia barreiras, maralhal, perdão, compagnons a comer sardinha assada - ao ver as sardinhas, vieram-lhe à ideia os scones-, e a beber vinho tinto. Grupos e mais grupos discursando, apresentando argumentos por entre acesas discussões...
E o Carlos lá foi andando, com a naturalidade e o ar pachorrento que lhe eram característicos.
Até que... até que alguns operários repararam que ele destoava no meio daquela festa.
As calças eram de ganga, como as de tantos que ali estavam, mas Levis todas bem engomadinhas, sem sinais de tinta de esmalte. Tinta, só se fosse da china, de alguma Mont Blanc de família mais traiçoeira. A camisa, imaculada e vincada, não enganava ninguém. As mãos não apresentavam sinais de vez alguma terem tocado numa pá que não fosse de plástico... e nas areias das praias da linha. A cara era de bebé Nestlé. E aquela trunfa, nada proletária, à Marquês de Pombal, ora bem!
E foi assim que o Carlos começou a sentir-se rodeado pelo calor humano do proletariado. Senhor! Ajudai-me, Senhor porqu’ eu não sei com’ é que fiz isto, pensou.
E logo, parecendo cair dos céus, se fez ouvir uma voz forte, firme, imponente e determinada:
-«Não há problema, pessoal,» sentenciou aquela voz que, como referi, apesar de forte, firme, imponente e determinada, não era a do Senhor. E quanto a sarça ardente, nada. O que mais dela se assemelharia seriam as fogueiras das sardinhadas. «O rapaz é cá dos nossos,» exclamou, surgindo por entre a multidão, o Onassis. Não leitor, não era propriamente o fantasma do famoso milionário, mas sim um compagnon, amigo do Carlos.
O Onassis não se chamava, obviamente, Onassis, mas sim Crespo. Aliás, era frequente, em pequenas localidades, marcadas por uma cultura predominantemente rural, que as pessoas conhecessem outras graças; maralha de um determinado estrato social, entenda-se, já que as elites preservavam as graças de baptismo e os títulos, herdados ou adquiridos. Quanto a outros epítetos, esses só surgiam, jocosamente, nas suas ausências, pela voz dos que se encontravam no estrato mais a baixo.
As alcunhas eram, na sua essência, depreciativas, ou como anos mais tarde outras elites, também elas, saudosistas, diriam, politicamente incorrectas, já que exploravam determinados aspectos físicos ou características sociais ou psicológicas, não muito simpáticas para os seus destinatários.
Para cúmulo dos cúmulos, passavam frequentemente de pais para filhos, de geração em geração, acompanhadas das narrativas que haviam estado nas suas origens.
E se o leitor esboça neste momento um sorriso, é porque desconhece as delícias e as virtudes quotidianas da vida rural.
Se calhar até compra Cds de grupos revivalistas com meninas da cidade a dançar o vira; se calhar até se saracoteia ao som dos grupos etnológicos de compagnons professores de trabalhos manuais do segundo ciclo do ensino básico com coletes pretos e cavaquinhos que rebuscam as verdadeiras raízes culturais e etnológicas do nosso povo; se calhar até simpatiza com o chique da romaria com banda no coreto.
Sossegue leitor, sossegue, leitora, pois O Senhor, na Sua infinita misericórdia, perdoar-lhe-á, já que o meu amigo e a minha amiga, tal como os da parábola, não sabe o que faz, ou tem graves problemas de paladar.
Só para ter um vago sabor das delícias da vida no campo, e se não entende a crueldade desta tradição, imagine-se a ser tratado por Texugo, até ao fim dos seus dias, só por causa de um tio-avô que você provavelmente nem sequer conheceu mas que, na sua juventude, tinha problemas de meteorismo. Imagine-se numa reunião do conselho de administração onde, por acaso, está presente um patrício que, em vez de o tratar pelos deferentes Sr. Dr. ou Sr. Administrador, exclama eufórico:
-«Olha o Texugo!» Para logo explicar aos seus pares do órgão. «Desde a escola primária que não via o meu velho amigo Texugo. Por acaso sabem por que é que ele era conhecido pelo Texugo? O avô dele era famoso por estar sempre a dar uns tra...»
Ou então, no caso da leitora, pense no gozo que teria ao ser conhecida, ao longo da vida, por Mata-Hari, devido a uma bisavó coscuvilheira. Imagine-se a ser tratada assim em todas as circunstâncias da sua vida. Recorra à sua imaginação, pois não há circunstância que escape; não há, não!
O Crespo recebera, naturalmente, o cognome de Onassis porque alguém nele descortinara semelhanças físicas com o milionário. Outra ilustre personagem histórica era o Xärxíl, neste caso devido ao seu aspecto bonacheirão e à sua imponência física que fazia lembrar o estadista inglês Winston Churchill. Havia ainda, entre muitos mais, o Vietcong, assim agraciado porque, certo dia, fizera um imenso escabeche no parque de campismo para montar a barraca - as tendas foram inventadas mais tarde, quando a solenidade democrática as consagrou para retirar do limbo social as remediadas férias do popolo minuto. Corria a guerra do Vietname, e alguém exclamara:
-«Porra, a barulheira que estes gajos fazem, até parece que vêm aí os vietcongs!»
Escusado será dizer que o filho dele também se chama vietcong, e que o netinho, ainda com alguns meses, já herdou um carinhoso vietconguezinho, nome com o qual entrará para o jardim de infância, e que o acompanhará até à casa de repouso. Excepto se fugir para a cidade, e não regressar às origens; e mesmo assim há que rezar para que nunca haja a tal reunião do conselho de administração, onde alguém se lembre do vietconguezinho.
Trata-se, como pode constatar, de uma espécie de versão rural da anamnsesis grega.
Além disso, as alcunhas podiam ser mesmo particularmente cruéis e ... divertidas, caso não fossemos nós os destinatários.
Atentai, caro leitor, cara leitora, nos seguintes exemplos escolhidos ao acaso: o Lâmpada Fundida, assim nomeado porque tinha um olho de vidro; o Pintas, um infeliz que ficara todo marcado pela varicela; o corno de vaca, assim apelidado porque, segundo se dizia, a mulher tinha um caso com outra mulher; ou, para encerrar este breve e sumário catálogo, o Tuiste, um carteiro que tinha uma perna ligeiramente mais curta do que a outra.
Ser-me-á perdoada a digressão mas ela impõe-se pela sua pertinência histórica, visto o nosso frágil herói ter estado presente no instante do baptismo do Tuiste. A cerimónia teve lugar numa manhã ainda o Dezembro de 1973 acabara de dar os primeiros passos, quando o tímido sol de Outono convidava os frequentadores do café do Presidente da Junta de Freguesia a vir até à esplanada para observar as derradeiras tansumâncias femininas em direcção à praça. O padrinho fora o Jorge Caldeira, um aristocrata genuíno. Como qualquer aristocrata genuíno, o Jorge nunca conhecera os apertos de um relógio de ponto, e vivia dos rendimentos familiares com a mãe num palacete à saída da vila. O ócio era, também ele, genuinamente cultivado. Nesse dia, tal como nos outros dias, o Jorge levantara-se a meio da manhã, tomara o seu duche, escanhuara-se, vestira-se, tal como sempre, em tons castanhos e bejes, com o seu colete, em cujo bolso se insinuava um relógio, preso pela corrente de prata ao segundo botão a contar de cima, o seu laço com o nó feito par lui-même, e fora até ao café saborear a bica, acompanhada do inevitável Monserrate e de uns triviais dedos de conversa.
Hélas, restava-lhe apenas um par de anos de vida, já que um dos seus hobbies do ócio lhe minava, em silêncio, o fígado.
Contemplavam o Carlos e o Jorge o rame-rame habitual, quando este interrompeu o silêncio:
-«Já reparou no fulano?»
-«O Nelo da Albertina?» Inquiriu o Carlos.
-«Sim,» anuiu o Jorge. «O Carlos não notou que o pobre de Cristo, anda sempre a subir e a descer, a subir e a descer, até parece que está sempre a dançar o twist.» A boca espalhou-se e o Nelo da Albertina deu lugar ao Tuiste.
Regressando ao que importa.
Naquela tarde junto à Assembleia, graças ao Onassis, o Carlos não comeu... uma doze de porrada dos compagnons da construção civil, nem provou scones com manteiguinha, mas, em contrapartida, petiscou umas deliciosas sardinhas assadas acabadinhas de fazer. Não bebeu chazinho preto, mas, em contrapartida, deu uns goles de uma excelente pomada. Não se sentou confortavelmente numa cadeira nas Vicentinas, mas, em contrapartida, empoleirou-se, às gargalhadas, nos muros da Assembleia. Não andou a deambular, ao acaso e melancólico, pelas ruas de Lisboa, recitando mental e atabalhoadamente Cesário Verde, mas, em contrapartida, teve direito a uma divertida visita guiada ao centro da História pelo meio dos sitiantes.
Enquanto se passeava com o amigo, veio-lhe à ideia a mensagem que enviara para outro Assento mais bem colocado, e concluíra que, naquela tarde, também Ele estivera ali, em São Bento, no cerco dos operários da construção civil.
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