quinta-feira, 1 de março de 2018
Entre filosofia e teologia, o desafio da alteridade
Na história do pensamento ocidental, teologia e filosofia coexistem tão profundamente que se podem descrever como «inseparáveis, nunca unidos». Para mais, elas descobrem uma nova solidariedade perante os desafios do nosso tempo. O que torna hoje filósofos e teólogos particularmente próximos é a experiência de uma pobreza comum diante da perceção difusa na cultura contemporânea de uma radical ausência de pátria, da ausência de um horizonte partilhado em relação ao qual se concebe o etos [conjunto de costumes e práticas de um povo], não só como práticas e costumes, mas também como enraizamento e morada, fundamento do viver, agir e morrer humanos.
Este sentido de adeus, esta fragilidade e fraqueza, são o lugar em que filósofos e teólogos já não se podem confrontar ou combater-se movidos por certezas fáceis, quase como se cada qual possuísse o bastão da verdade com o qual julga o outro. A lâmina da dor do tempo, o desafio deste elusivo estado líquido (cf. Zygmunt Bauman), que tudo parece pervadir, não pode deixar de nos interrogar sobre a mutação epocal que estamos a viver. Teologia e filosofia mais pobres, menos ideológicas, são precisamente por isso mais abertas à procura, e assim acomunadas na experiência e na necessidade de pensar, ambas, na alteridade que as causa, tal como a modernidade as tinha provocado com a sua ambição de compreender a totalidade do real no exercício da razão adulta e emancipada.
O desafio da alteridade parece oferecer-se, sobretudo, em três formas, como o lugar onde filósofos e teólogos podem hoje encontrar-se: o maravilhamento, a agonia e a ética. No primeiro a alteridade apresenta-se de maneira pura e forte: ela nasce do impacto com o Outro, com a sua presença indedutível e não programável, com a sua ausência inquietante. O maravilhamento, que é ao mesmo tempo assombro e temor, é, como observa Platão, a paixão do filósofo, mas é também – como sublinha Karl Barth na sua “Introdução à teologia evangélica” – a condição do teólogo.
O maravilhamento nasce do saber de não se possuir o Outro a partir de um pensamento, que sabe ser por natureza transcendente em relação ao Outro: «Denken heißt überschreiten», afirmava com razão Ernst Bloch, pensar é transgredir, não se deter na tranquila posse, mas deixar-se alcançar e provocar pelo novo e pelo diferente. Escrevia Friedrich W.J. Schelling: «É uma sentença conhecida de Platão: a paixão do filósofo é o maravilhamento. Se essa sentença é verdadeira e profunda, então a filosofia, em vez de se limitar ao que deve ser entendido como necessário, preferirá sentir a tendência de passar do que se deve considerar como necessário, o que, portanto, não provoca nenhum maravilhamento, àquilo que está fora e acima de todo o exame e conhecimento necessários; não encontrará qualquer paz antes de chegar a algo que seja digno de um maravilhamento absoluto».
Quem vive a dificuldade do conceito sabe que está a lidar com a alteridade pura e forte do Outro. Este Outro o teólogo experimenta-o não apenas na forma de uma escuta intelectual, mas também na densa e provocatória experiência do divino Outro, que é a oração. Não menos pode o filósofo abrir-se à radical alteridade do Outro no assombro do seu interrogar-se sobre o abismo do início, onde se experimenta o maravilhamento consciencializado do pensar (o assombro da razão).
A agonia é igualmente um rosto da experiência da alteridade: a relação com o Outro é luta. A agonia é experimentar em si a fronteira a atravessar, apercebida na forma da interrogação, que incessantemente provoca o pensamento a transcender-se. É esta a razão especulativa mais profunda da copresença da fé e da não crença em cada um de nós, porque todos, no momento em que somos não negligentes no pensar e nos abrimos até ao fundo à alteridade do Outro e ao seu incessante colocar-nos em questão, vivemos a inquietude da sua elusiva alteridade.
Não se dá apenas um existir perante o Outro, que vem a nós e nos perturba, seja ele entendido como indiferença do Início ou como Deus que vem, mas também um existir com o Outro na luta, o viver o pensamento como fadiga e paixão. O cristianismo, enquanto experiência do divino Outro que vem a nós, é por natureza agonia, como sustenta Miguel de Unamuno. A teologia será, portanto, levar ao conceito a agonia do viver cristão, e filosofia pensar a agonia do próprio pensamento.
Nesta condição agónica, filósofo e teólogo encontram-se: o pensamento nasce da dor, e sem a interrupção provocada pela ferida do mal e da morte não se daria o pensamento. «Da morte, do temor da morte, toma início e eleva-se todo o conhecimento acerca do Tudo», escreve Franz Rosenzweig na abertura de “A estrela da redenção”.
É também por esta razão que não se pode fazer pensamento sem ética: esta não é apenas o compromisso de existir diante do Outro e de resistir na luta com o Outro, mas também a consciência de existir para os outros. A ética é, portanto, o campo do terceiro grande desafio da alteridade, dirigido aos filósofos e teólogos na dor do tempo presente, na ausência da pátria: o desafio no plano do agir moral. Os outros não devem ser entendidos apenas como uma produção do nosso pensamento, como limite ou desafio da nossa liberdade e das nossas escolhas, mas também e acima de tudo como pergunta radical, fundamento do existir eticamente responsável, da vida como correspondência. Está aqui em jogo o outro invocado por Emmanuel Lévinas como crise da metafísica a favor de uma sua superação na ética.
É ainda mais radicalmente o outro da “caritas” evangélica, do mandamento "semelhante" ao primeiro, participativo e realizador dele, que é o mandamento do amor. Os outros desafiam filósofos e teólogos a superar a falsa separação entre teorética e ética: a dimensão moral investe hoje a teorética de maneira forte, como questão de existir e pensar a existência não só em si mesma, mas para os outros. Portanto, nestas frentes do maravilhamento, da agonia e da ética estamos hoje todos mais pobres: a condição de perda, debilidade, fragilidade que daí deriva pode ser acolhida como desafio a escapar, a cair e, portanto, a não pensar, ou pode ser vivido como uma provocação para um pensamento não negligente, que tenha a coragem da solidão na qual se dê espaço para o maravilhamento e que aceite viver a responsabilidade pelos outros no primado do amor.
D. Bruno Forte
Arcebispo de Chieti-Vasto, Itália
In L'Osservatore Romano
Trad.: SNPC
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