quarta-feira, 28 de setembro de 2016
Um contributo para a compreensão da América (texto publicado no DN)
The Nine Nations of North America é o título insólito de uma obra publicada em 1981 por Joel Garreau. Nela, Garreau defendia a tese segundo a qual, sob umas fronteiras “artificiais” – os países - identidades culturais e económicas profundas deviam ser reconhecidas: as tais nove nações. Cito dois exemplos, Ecotopia – designação tomada do romance utópico de Ernest Callenbach, com capital em São Francisco, estendendo-se ao longo da costa oeste, da Colúmbia Britânica ao norte da Califórnia; e Mexamérica, com capital em Los Angeles, formada pelo sul da Califórnia e do Arizona, por grande parte do Texas, do Novo México e – algo que perturbaria o excêntrico muro de Trump – o norte do México.
Esta tentativa de desvendar matrizes identitárias ancoradas em horizontes geográficos, ecoa Letters from an American Farmer (1782), o clássico iluminista de Michel Guillaume Jean de Crèvecoeur que, ao adquirir a cidadania americana, passaria a chamar-se John Hector St. John of Crèvecoeur. Aí, na célebre carta, “What is an American”, ele identifica o perfil da jovem nação – o melting pot, associando comportamentos cívicos ao enquadramento institucional emergente, ou à sua ausência (a fronteira), nas circunstâncias geográficas do Novo Mundo. Assim se delineia uma linha de pensamento que Thoreau revisitará, e na qual Garreau se inscreve.
No entanto, esta leitura esquece uma outra dimensão dos Estados Unidos, aquela em que os matizes identitários se ancoram na retórica dos colonos puritanos: terra prometida, povo eleito, espírito de missão, ética da responsabilidade individual. Ora, o início da década de 1980 recupera-a, introduzindo-a explicitamente no argumento político. Penso na investidura do Presidente Reagan onde ele enfatiza a sua actualidade ao recordar o puritano John Winthrop que, ainda a bordo do Arbella, associa o lugar que os aguarda à cidade no monte (Mateus 5, 14).
Uma leitura apressada estabeleceria uma razão de causa-efeito entre este argumento e o conservadorismo reaganiano. A questão é mais complexa, pois o legado de Winthrop fora já evocado pelo Presidente Kennedy ao proclamar o desígnio da Nova Fronteira, e seria retomado em 1997, pelo Presidente Clinton, na segunda investidura, ao mencionar a promessa da Terra Prometida. Clinton revê-o, porém, sob o signo iluminista que consagra a universalidade sabiamente ampliada por Martin Luther King no discurso de Washington. Esta é, portanto, uma retórica transversal à sociedade americana e indissociável da sua dimensão mítica. Uma retórica Branca, Anglo-Saxónica e Protestante, dir-se-á. E, todavia, mítica.
Curiosamente, pertence a um republicano, Clint Eastwood, uma das interpelações estéticas mais profundas desta dimensão. Ainda na primeira metade da década de 1980, este realizador toma a forma de expressão artística americana por excelência - o cinema, e o seu género privilegiado - o western, para a ela proceder em Pale Rider. Entre nós este filme foi intitulado Justiceiro Solitário, o que rasura as reverberações bíblicas - em Apocalipse 7, 8, o cavaleiro que representa a Morte, monta a pale horse. São muitas e subtis as formas como Eastwood perturba o mito; aponto apenas esta: o protagonista é, paradoxalmente, um pregador e um pistoleiro que, qual fantasma, surge do reino dos mortos ao som das palavras do Salmo 23, aqui usadas no enterro de um… cão. Estamos longe da solenidade em que este Salmo é amiúde lido e dos protagonistas unidimensionais recorrentes no western.
Tal como a América confrontada com os fantasmas da sua História recente, dos resquícios da II Guerra Mundial ao mais recente Vietname, também no filme os fantasmas predominam; neles é uma alteridade que emerge, o que suscita outra questão.
Haverá uma certa tendência para imaginar uma idade do ouro em que a democracia ali decorreria sem discursos perturbadores do normal funcionamento institucional. Basta, no entanto, olhar para os tempos da Revolução Americana para reconhecer as múltiplas tensões e contradições que então se viveram. Lembre-se quão intensos foram os debates entre os que defendiam uma organização baseada nos exemplos de Esparta, ou de Roma ou de Atenas, entre governo estadual e central, e na solução mista que acabaria por prevalecer. Lembre-se os inúmeros movimentos de base, não raro violentos, que a historiografia recente tem vindo a investigar.
“Contradigo-me?/ Muito bem, então, contradigo-me / (sou imenso, contenho multidões)”, proclamou Walt Whitman, poeta da epopeia americana. Reconhecer que essa imensidão implica a presença da alteridade, revela, por um lado, bom senso (um eco filosófico iluminista vindo da Escócia pela mão de Lord Kames) que se repercutiria no sistema de checks and balances, e, por outro, abertura para as vozes críticas face ao governo. Um nobre exemplo destas será Henry Adams, autor da famosa autobiografia The Education of Henry Adams, e membro da aristocracia política familiar iniciada com o Presidente John Adams. A ele se devem censuras a Washington – leia-se, ao governo – tão radicais que banalizam muitas das investidas verbais dos populismos que, à direita e à esquerda, hoje se fazem ouvir.
Afinal, embora com matizes distintos, têm sido vários os movimentos que não se inscrevem na matriz fundadora, do populismo oitocentista do People’s Party, ao anarquismo do início do século XX, ou ao socialismo de Henry Wallace que Oliver Stone tentou resgatar em A História não contada dos Estados Unidos. Mais ou menos fugazes, eles não têm, contudo, conseguido rasurar essa matriz. Resta saber se os partidos que a representam, são capazes de reconhecer e dar resposta aos sintomas em que populismos vários hoje se alimentam.
Nota final, quando se refere a presença da língua espanhola na realidade americana actual, ignora-se um facto relevante: mais do que uma língua é uma diversidade cultural que ali se sinaliza. Na forma como esta diversidade se integrar e ajudar a reescrever essa matriz, e como esta a saberá acolher, reside muito da vitalidade que, no futuro, uma América sedimentada nas contradições poderá ter.
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