sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Bartleby sob o olhar de Giorgio Agamben



Giorgio Agamben
Bartleby – Escrita da Potência
Seguido de Bartleby, O Escrivão de Herman Melville
Tradução de Gil de Carvalho
Assírio & Alvim, 2008


A década de 1850 é habitualmente identificada, nos Estados Unidos, com o auge do Renascimento Americano, isto é, um momento histórico durante o qual surgem um conjunto de obras que vão emancipar as letras americanas das velhas musas da Europa: Ralph Waldo Emerson proclama essa independência nos seus ensaios (1850 é a data da edição de Homens Representativos); em A Letra Escarlate (1850) Nathanael Hawthorne evidencia a presença puritana na sociedade oitocentista; Herman Melville antecipa o romance moderno com Moby-Dick (1851); Henry David Thoreau reformula a escrita autobiográfica em Walden, A Vida nos Bosques (1854); Walt Whitman inaugura uma tradição épica com “Canto de Mim Mesmo” (1855).

No seio destas obras fundamentais importa acentuar a produção narrativa de Herman Melville que, após uma década de intensa e diversificada contribuição para o universo literário contemporâneo, se dedicará quase exclusivamente à criação poética.

Neste espaço de tempo, para além do acima mencionado Moby-Dick, Melville dá a lume White-Jacket (1850), onde prenuncia Moby-Dick; Pierre, no qual aborda a incómoda temática do suicídio (1852), Bartleby (1853), The Encantadas (1854), Israel Potter (1855), Benito Cereno, um libelo contra a escravatura e o racismo (1855), The Piazza Tales (1856, reunindo Bartleby e Benito Cereno), The Confidence-Man, uma sátira ao optimismo transcendentalista (1857). Segue-se o silêncio. Em 1859 a mulher de Melville, Elizabeth, escreve numa carta à mãe: “O Herman começou a escrever poesia. Não diga nada a ninguém, pois sabe como estas coisas se espalham.”

Embora a generalidade destas obras ou visite temáticas sensíveis para a sociedade americana no período que antecede a guerra civil, ou questione radicalmente os cânones narrativos (em Moby-Dick Melville antecipa algumas das experiências mais radicais da narrativa do século xx, inserindo registos inesperados e estranhos, e fazendo coabitar diferentes géneros no mesmo espaço textual – poesia, drama, escrita confessional, discurso científico, etc.), Bartleby – O Escrivão será, talvez, aquela que maior perplexidade suscita.

À semelhança do que afirma Nick Carraway, o narrador de O Grande Gatsby, no final deste romance, Melville é um barco contra a corrente dominante na América de meados do século XIX. Autores fundamentais, como os acima mencionados Emerson e Whitman, celebram o indivíduo e as suas imensas capacidades. Tanto no pensamento como na intervenção social, nomeadamente através da palavra, do discurso, é a acção, a energia que então se celebram.

Contra a corrente, Melville parece contrapor (celebrar?), em Bartleby, o oposto: a inacção e o silêncio.

Importa, desde logo, referir a escolha desta profissão, escrivão. A sua relevância, no âmbito de um tecido social urbano nova-iorquino, havia sido reconhecida por Charles Dickens ao inserir um escrivão entre o núcleo de personagens de Bleak House. Por seu turno, Charles Briggs, no seu romance sobre Nova Iorque, The Adventures of Harry Franco, atribui ao protagonista esta profissão quando ele se inicia na vida da grande metrópole. Uma palavra surge aí para caracterizar esta actividade, monótona.

Ao escolher esta profissão, Melville atribui visibilidade a uma actividade anónima e certamente pouco imaginativa que não participa da energia que enforma o sonho americano. Além disso, retira do silêncio essa actividade. Dupla ironia, visto ser esta uma narrativa sobre o peso esmagador do silêncio e da resistência passiva. E do seu preço, pois este, como o desenlace evidencia (antecipando outro silêncio, o de Billy Bud, protagonista da derradeira novela de Melville), pode ser a própria morte.

Na estranheza que percorre o silêncio de Bartleby muitos reconheceram uma antecipação de Kafka ou de Ionesco. Ora, esta edição permite uma revisão desta leitura através do olhar do filósofo italiano Giorgio Agamben (1942). Numa análise que, a par da de Gilles Deleuze, figura entre as mais argutas que o século XX conheceu deste texto, Agamben reposiciona a narrativa no âmbito de uma tradição hermenêutica que reavalia o diálogo entre o silêncio e a acção, assim questionando leituras mais tímidas. Por seu turno, Gil de Carvalho reviu a sua tradução de 1988, de modo a reconfigurar o texto a partir do olhar de Agamben (o negrito dá ênfase à distância do tradutor face à sua versão original). Por fim, as fotos do local de trabalho do filósofo não só criam uma ponte entre o seu texto e o de Melville, como sinalizam uma idêntica filiação.

Esta edição oferece, deste modo, uma narrativa indispensável para quem deseja conhecer a literatura americana e uma perspectiva crítica incisiva e pertinente.

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