segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Com a devida vénia à maior actriz dos nossos tempos,


aqui vos deixo algumas palavras da recensão de Joachim Lepastier, nos Cahiers du Cinéma, a propósito de... claro, A Dama de Ferro.
Voilà:
"Margaret Thatcher, icône du féminisme? La chose nous avait échappé. Heureusement que le cinéma est là pour nous (ré)éduquer, nous, pauvre froggies aveuglés par une adolescence passée à écouter Miss Maggie de Renaud. Non, nous n'avions pas vu que Thatcher était plus qu'une femme politique, qu'elle était LA femme politique: à la fois ménagère irréprochable (héritage de la gestion de l'épicerie familiale), proche de la vie quotidienne (la seule à savoir combien coûte une plaquette de beurre), chef de guerre et consolatrice en chef (elle écrit personnellement aux mères de soldats tués aux Malouines) et instit' old school (elle corrige les fautes d'orthographe de ses ministres).
... ce biopic prend le spectateur pour un gamin malade qui, sous le regard protecteur de sa maman, grimace en avalant la pilule, mais se dit que c'est pour son bien. Le film frôle pourtant une certaine cruauté quand il revient au présent avec une Thatcher "Norma Bates" continuant à dialoguer avec son mari disparu. Mais cette partie en huis clos (qui manque de tranchant à force de vouloir attendrir) dit aussi l'inconscient du film: transformer Thatcher en héroïne de cinéma, c'est créer une improductive hallucination."
Boa semana... alucinados sempre, sim, mas com bons filmes!

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Ash Wednesday, de T. S. Eliot, a primeira parte:


"Because I do not hope to turn again
Because I do not hope
Because I do not hope to turn
Desiring this man's gift and that man's scope
I no longer strive to strive towards such things
(Why should the aged eagle stretch its wings?)
Why should I mourn
The vanished power of the usual reign?

Because I do not hope to know again
The infirm glory of the positive hour
Because I do not think
Because I know I shall not know
The one veritable transitory power
Because I cannot drink
There, where trees flower, and springs flow, for there is nothing again

Because I know that time is always time
And place is always and only place
And what is actual is actual only for one time
And only for one place
I rejoice that things are as they are and
I renounce the blessed face
And renounce the voice
Because I cannot hope to turn again
Consequently I rejoice, having to construct something
Upon which to rejoice

And pray to God to have mercy upon us
And pray that I may forget
These matters that with myself I too much discuss
Too much explain
Because I do not hope to turn again
Let these words answer
For what is done, not to be done again
May the judgement not be too heavy upon us

Because these wings are no longer wings to fly
But merely vans to beat the air
The air which is now thoroughly small and dry
Smaller and dryer than the will
Teach us to care and not to care
Teach us to sit still.

Pray for us sinners now and at the hour of our death
Pray for us now and at the hour of our death."

E agora o comentário de José Tolentino Mendonça:

"Um dos mais espantosos apelos de Quaresma que conheço não foi assinado por um eclesiástico, nem por um teólogo, mas sim por um poeta. Escreveu-o T. S. Eliot em 1930, três anos após a sua conversão, e deu-lhe um nome austero, sem o cómodo encosto que por vezes é o dos adjectivos: chamou-lhe simplesmente “Quarta-feira de Cinzas”.
Nesse poema, dizem-se três coisas fundamentais. (...)
1. A Quaresma vem ao nosso encontro para que nos reencontremos. Os traços que o poeta desenha coincidem dramaticamente com os do nosso rosto: damos por nós a viver uma vida que não é vida, acantonada entre lamentos e amoques, sem saber aproveitar verdadeiramente a oportunidade que cada tempo constitui, como se tivéssemos capitulado no essencial, e passássemos a olhar para as nossas asas (e para as dos outros) sem entender já o papel delas. “Esmorecendo, esmorecendo”.
2. A Quaresma vem ao nosso encontro para nos devolver ao caminho pascal. O que é que nos dá o sentido de redenção no tempo? – pergunta o poema. E o poema evangelicamente responde: o sentido de transformação é-nos dado quando aceitamos trilhar um caminho. O que nos permite passar do cerco das coisas triviais (...) de nos fazermos de novo à estrada, e à estrada menos óbvia e mais adiada que é aquela interior. A Páscoa é a grande possibilidade de revitalização. Mas é preciso consentir naquela imagem brutalmente verdadeira do profeta Ezequiel: por agora somos mais uma sucata de restos, do que uma primavera do Espírito.
3. A Quaresma vem ao nosso encontro para que a tensão criadora do Espírito de Jesus redesenhe em nós a vida. Interessantes são os verbos que o poeta usa como prece: “que sejamos instigados”, “que sejamos sacudidos”. A Quaresma faz-nos passar do “deixa andar”, e do viver espiritualmente entorpecido ao estado da corda tensa. Aquela que é capaz de avizinhar da nossa humanidade reencontrada a música de Deus."

Um bom dia para vós!

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

"Os clássicos ajudam-nos a interpretar o mundo"


É com esta frase que Vasco Graça Moura encerra o artigo de opinião publicado ontem no Diário de Notícias.
Pela sua importância cultural e política, pela síntese brilhante ali feita, por tudo aquilo que ele evoca de aulas e discussões pretéritas com alunos de licenciatura, mestrado e doutoramento... por tudo isso, é para estes mesmos alunos e para os que hão-de vir, que eu o deixo aqui, na íntegra, com um abraço:

"A imagem da mulher que segura o filho morto nos braços tornou-se, a partir da Idade Média, uma importante referência plástica e emocional do Cristianismo. Da rude imaginária medieval, de origem alemã (os Vesperbilder), desde o século XIII, e da Pietà dita de Avignon, de meados do século XV - esta ainda com processos típicos dos primitivos na elaboração realista da representação -, até aos Renascentistas e Maneiristas, à estatuária religiosa do Barroco e a Van Gogh, a figuração da mater dolorosa tornou-se um símbolo do drama humano que representa a perda de um filho. Mas na série avulta, sem carga expressionista, a Pietà do Vaticano, de Miguel Ângelo (1499), em que são representadas a gravidade melancólica da mãe, alcandorada a um idealizado plano neoplatónico e metafísico, e a morte do filho, a finitude irremediável do corpo humano, numa articulação indissociável e deslumbrante entre esses dois planos.

Na escultura do Buonarroti, a mãe de Jesus é uma jovem mulher, sem idade para ser mãe dele, talvez por alusão ao Dante que escreve "Vergine Madre, figlia del tuo figlio", talvez para aludir a uma virgindade sem corrupção, como sugere Vasari e o próprio escultor terá dito. Aqui, a arte não imita a Natureza, uma vez que a mãe nunca pode ser mais nova do que o filho. Vê-se antes como um reflexo do divino e a questão deixa de se pôr em termos de mimetismo.

Na pureza das suas linhas, a beleza daquela mãe não é deste mundo e não exprime, sequer contidamente, a dor lancinante de quem acaba de perder um filho. É antes uma figuração da ordem do transcendente e do intemporal. Prende-se ao mundo das ideias e da perfeição divina, na sua serenidade contemplativa, ante a perda de um ser amado. Ou, como diria o Camões da "Sôbolos Rios" tratando de outra humana figura, "é raio da formosura / que só se deve de amar", "é sombra daquela ideia / que em Deus está mais perfeita".

No entanto, o corpo morto que essa mulher ampara nos seus braços é bem deste mundo no seu realismo insuperável. É um cadáver cujo peso inerte nos é dado com suprema mestria, na modelação e na sugestão dos músculos e das veias no mármore polido, num abandono fortemente acentuado pela maneira como o braço direito de Jesus tomba até ao solo e como o corpo dele, esvaídas todas as tensões, resvalou para a morte, e nos é exposto naquele regaço.

Falando disso, dizia Vasari ser "certamente um milagre que uma pedra inicialmente sem qualquer forma tenha sido levada àquela perfeição que a Natureza se empenha a formar na carne". Não tem nada de metafísico e, todavia, tem tudo de metafísico. É a morte daquele homem ali representado na beleza material das linhas do seu corpo sem força, mas é também, no colo de quem lhe deu vida, a morte do Homem, projectada numa dimensão do universal.

O equivalente musical transfigurado de uma Pietà são os Stabat Mater, tal como o podem ser as Paixões, de Heinrich Schütz ou de J. S. Bach, interpelações que nos dizem de um sofrimento que se propaga ao mundo, fazendo-nos vibrar entre uma nostalgia do divino, um sentimento de piedade e a emoção da maior dor humana, comovendo-nos na catarse inevitável que provoca.

É para essa dimensão cultural e existencial que remete a extraordinária fotografia de Samuel Aranda, agora premiada pela World Press Photo. A imprensa salientou, justamente, a sua relação formal com a Pietà. Uma composição triangular, em que uma mulher velada segura o corpo de um homem. Não sabemos se é seu filho ou não. Não sabemos se está morto ou apenas ferido. Não sabemos a idade que ela e ele têm. Mas sabemos o que nos lembra.

Se historicamente uma cena semelhante ocorreu na morte de Jesus, esta imagem é muito mais "realista" na representação correspondente à mãe, do que a de Miguel Ângelo na vibração renascentista esplendorosa da sua Pietà.

E se é certo que um episódio ocorrido no Iémen não tem nada a ver com a morte do nazareno, também é certo que nós não conseguimos lê-lo sem esse referente iconológico fortíssimo da tradição ocidental. Os clássicos ajudam-nos a interpretar o mundo."

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Uma espécie de Monty Python avant la lettre,


é este romance que, algures nos anos oitenta, traduzi para a Moraes. O seu autor é um grego que dá pelo nome de Emmanuel Royidis. Embora eu não tenha traduzido... do grego, claro, mas sim a partir da versão inglesa, da autoria de Lawrence Durrell, que também assina o prefácio.
O romance é absolutamente louco e, pelo menos para mim, muito divertido.
Há uns tempos revi profundamente a tradução para esta reedição pela Guerra e Paz.
Deixo-vos o princípio.
Se gostarem, comprem (não recebo mais por isso) e leiam o resto:

"O poeta épico começa habitualmente a sua narrativa pelo meio. Os romancistas estão também aptos a fazê-lo, podendo classificar-se um décimo do seu trabalho como prosa poética. Deste modo, o herói, surja ele deitado numa cave ou num palácio, num divã ou numa chaise longue, confronta-se com a inevitabilidade de recordar tudo o que passou em benefício da sua amada. “Tendo provocado o amor grandes sacrifícios...” etc. Enfim, já conhecem esta história.
Tal é o método habitual, tão elogiado pelos críticos. Mas apesar de eu próprio ser um partidário das regras, prefiro o método do escritor de sagas ou do procurador que, quando chegam à altura de descreverem um herói ou um tratante, agarram-no no berço, se assim se pode dizer, e acompanham-no cronologicamente até à imortalidade ou até à forca. A minha narrativa vê-se assim obrigada a começar pelo princípio, e quem preferir uma desordem clássica pode começar por ler as últimas páginas, e deixar as primeiras para o fim; transformará assim um história simples e linear num texto épico.
O próprio grande Byron foi paciente ao ponto de ouvir o palrar das velhas em Sevilha, para desse modo descobrir se a mãe do seu herói dizia o Pai Nosso em latim, se sabia hebreu, ou se vestia ou não uma saia de linho ou se usava meias. Também eu desejaria informar o meu leitor, senão de todos estes detalhes, pelo menos do nome dos antepassados da minha heroína; mas, apesar das minhas pesquisas nas Histórias de todos os Heródotos medievais, apenas fui capaz de descobrir que o seu pai tinha tantos e tão variados nomes quantos os poetas concederam a Zeus, e os hindus ao Diabo.
Após ter passado vários anos de estudo nos meus manuscritos com a esperança de descobrir se a linha genealógica de Joana descendia dos Willibalds ou dos Willifrids, foi com relutância que me vi forçado a duvidar do reconhecimento público por tal empresa. Assim, de acordo com os sábios em voga, que parecem recear perder tempo na leitura, visto ela os impedir de escrever e deste modo recusar algo de valioso à posteridade, retomo o fio condutor da minha narrativa – por outras palavras, começo-a.
O desconhecido pai da nossa heroína era este um monge inglês, embora não tenha conseguido saber qual o condado de que era originário, já que naqueles tempos a Bretanha ainda não havia sido dividida em condados por conveniência dos colectores dos impostos. Os seus antepassados foram aqueles apóstolos gregos que se encontravam entre os primeiros a fixar a Cruz nos verdes campos da Irlanda."

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Rio e paisagem


é o tópico que abordo, tendo como conceito a anacronia, a partir de poemas e quadros de ingleses, americanos, franceses e lusos, no número de Janeiro da Colóquio Letras que inclui um dossier sobre a paisagem. Aqui fica a informação para quem possa estar interessado.